Por Marcos Fabrício Lopes da Silva*
Sobre o livro Mastodontes na sala de espera (2011), Luiz Roberto Guedes comenta: “Brum destila poemas com humor seco, ácido, esboçando mapas provisórios de um mundo alucinado, onde ‘um homem lê um livro em chamas’”. Mundo alucinado? Consultando o dicionário Houaiss (2012), verifica-se que o verbete “alucinado” detém uma polissemia dialética. Ora, sugerem-se os seguintes sentidos: “enlouquecido, ensandecido, louco, que(m) perdeu momentaneamente o uso da razão, do entendimento; desvairado, maluco”. Ora, significações distintas se apresentam: “que(m) está ou ficou fascinado; deslumbrado, encantado, enfeitiçado”.
Este mundo “ensandecido” e “encantado” aparece transfigurado no livro de Bruno Brum como poética do espanto. Usamos aqui o termo “espanto” com o sentido de admiração e inquietação diante do mundo e dos homens. Primeiro foi o espanto, depois o despertar crítico e a decepção. Parece-me que assim se deu o percurso ironicamente feito por Brum, considerando, por exemplo, o poema “Discurso por ocasião de um congresso internacional de pessoas jurídicas”. Existe ali um “pensamento literário”, conforme preconizou Décio Pignatari, em Semiótica & Literatura (2004) – no qual Brum problematiza, a nosso ver, o processo de “gestão como doença social”, problema real que mereceu sistematização teórica por parte do sociólogo Vincent de Gaulejac.
Considerando, à maneira de Pignatari, que “o signo linguístico sempre acaba por referir-se a signos de outra natureza, num processo a que chamamos de significação”, o signo literário desenvolvido por Brum “gosta de encostar-se nos demais signos”. Daí surge o “pensamento literário” do poeta mineiro que, a nosso ver, ler a contrapelo o poder gerencialista, sendo este marcado por uma incitação ao investimento ilimitado do indivíduo no trabalho, para tentar satisfazer os próprios pendores narcísicos e as próprias necessidades de reconhecimento. Trata-se de instilar nas mentes uma representação do mundo e da pessoa humana, de modo que o único caminho de realização de si consista em se lançar totalmente na “luta pelos lugares” e na corrida para a produtividade. Ora, a fim de melhor garantir seu empreendimento, essa lógica transborda seu campo e coloniza toda a sociedade – adverte Gaulejac, em Gestão como doença social (2007). Crítica dessa cultura do alto desempenho, no qual o ego de cada indivíduo se tornou um capital que ele deve fazer frutificar, a voz poética de Bruno Brum apresenta uma série de comportamentos sociais distorcidos oriundos da “colonização do mundo vivido” frente ao “mundo sistêmico”, conforme já denunciava Jürgen Habermas, em Conhecimento e interesse (1982):
“Nunca conversei com uma empresa./As empresas estão sempre ocupadas e não costumam/falar com estranhos./Nunca trabalhei em uma empresa./As empresas almoçam todos os dias no self-service mais/próximo e falam diversas línguas com perfeição./Nas empresas há pessoas que seguram copos de uísque/como se segurassem caralhos./Nas empresas há pessoas que se masturbam no banheiro/no horário do almoço./Trabalho na mesma empresa há muitos anos./Dormimos/na mesma cama e todas as noites ela abre as pernas para mim./As empresas estão sempre abertas e de bom humor./As empresas sempre dizem bom dia, boa tarde, boa noite./Há sempre muitas empresas à disposição quando preciso, por isso não me preocupo./As empresas dizem todos os dias que não devo me pre-/ocupar, mas eu já não me preocupava bem antes de elas/dizerem isso”.
Neste poema de Brum, existe uma crítica ao culto organizacional da impessoalidade, uma vez que os envolvimentos mais próximos entre os funcionários são tachados como responsáveis diretos pelas decisões administrativas tendenciosas e particularistas. A afetividade é percebida pejorativamente como elemento perigoso que interfere na imparcialidade enquanto valor de decisão eficaz e eficiente. O “eu-poético” chama a atenção para os estrangeirismos que dirigem às relações corporativas, a começar pela linguagem e supremacia idiomática inglesa, propícia ao desenrolar dos negócios, principalmente os que envolvem capital de interesse estrangeiro. Destaque, no poema, para o tempo livre consumido pelo tempo produtivo, uma vez que o restaurante fica próximo do lugar de trabalho para agilizar o deslocamento dos funcionários e a retomada mais ligeira das atividades. Posturas narcisistas e intimidades clandestinas também formam o clima organizacional, mesmo que tais comportamentos não sejam assuntos palatáveis, considerando a etiqueta institucional dissimulada.
Brum ironicamente desmascara a ideologia do “vestir a camisa” como sinal de entrega e dedicação profissionais. Existe, no poema, uma espécie de ‘falsete amoroso’ entre empresa e funcionário. Caricaturalmente, o que se percebe, muito mais, é a existência de uma relação instrumental e interesseira. Digna de desconfiança também é a polidez blasé presente nos cumprimentos automatizados e protocolares do ambiente corporativo. Com discursos vazios, os propósitos de felicidade e sucesso têm como carro-chefe a viabilização primeira do lucro e da fama institucionais; em segundo plano, fica o bem-estar dos públicos interno e externo. A badalada perfeição perseguida e falaciosamente proclamada esconde os enganos empresariais, o que se trata de prejuízo de princípio: “Empresas nunca ficam sem assunto. São capazes de con-/versar durante horas sobre qualquer coisa./Empresas nunca perdem o sentido ou a razão./Empresas nunca se atrasam./Todos sabem onde vivem as empresas. Elas estão sempre/abertas e de bom humor/Trabalho na mesma empresa há muitos anos e até hoje/não sei o seu nome, função, razão social ou CNPJ, mas/não a culpo por isso”. No poema de Bruno Brum, o choque de gestão está em xeque, porque continua explorando as antigas relações alienadas de trabalho e emprego.
* Professor das Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.